Por que há mulheres que não se libertam de relações abusivas?

“Insegurança e sentimento de inferioridade podem nutrir uma percepção distorcida da relação, havendo uma excessiva idealização do parceiro”, diz o psiquiatra Adiel Rios

Fotógrafo: Ilustração
Fonte: FGR Assessoria de Comunicação 01/08/2022 - 22h14

A maioria das mulheres brasileiras (86%) percebeu um aumento na violência cometida contra pessoas do sexo feminino durante o último ano. A conclusão é da pesquisa de opinião “Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher - 2021”, realizada pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência. 

A pesquisa é realizada a cada dois anos, desde 2005. A edição de 2021 revela um crescimento de 4% na percepção das mulheres sobre a violência em relação à edição anterior. O estudo ouviu 3 mil pessoas entre 14 outubro e 5 de novembro. Segundo a pesquisa, 68% das brasileiras conhecem uma ou mais mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar, enquanto 27% declaram já ter sofrido algum tipo de agressão por um homem. 

De acordo com a pesquisa, 18% das mulheres agredidas por homens convivem com o agressor. Para 75% das entrevistadas, o medo leva a mulher a não denunciar. O estudo demonstra, no entanto, que 100% das vítimas agredidas por namorados e 79% das agredidas por maridos terminaram a relação. 

Fica a questão: quais são os elementos e gatilhos que desencadeiam esta problemática? “Um deles é o relacionamento abusivo e tóxico, cujo padrão ainda é exaustivamente estudado, pois há uma série de contextos por trás deste comportamento. Afinal, nenhuma mulher escolhe viver uma relação destrutiva”, pontua Monica Machado, psicóloga pela USP, fundadora da Clínica Ame.C, pós-graduada em Psicanálise e Saúde Mental pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein. 

No entanto, segundo ela, muitas mulheres vivem relacionamentos abusivos há anos, desvalorizando aspectos fundamentais como autoestima, amor-próprio, equilíbrio emocional, autoconhecimento, respeito, entre outros diversos, mantendo a relação em uma base totalmente nociva.

 

Como identificar que o relacionamento está tomando essa direção

Para entender um relacionamento abusivo, é necessário saber como funciona uma relação saudável. Para Monica Machado, cabe a ambos nutrir afeto, respeito, confiança, admiração, empatia, tolerância diante de divergências e, acima de tudo, uma comunicação eficaz e assertiva. 

Já a relação tóxica pode começar de maneira sutil, como uma crítica a um comportamento, a maneira da pessoa se vestir, e vai piorando aos poucos, quando o parceiro demonstra claramente que está controlando e perseguindo a mulher, com a pretensão de coagi-la e torna-la submissa a ele. 

Segundo a psicóloga, esse tipo de relação resulta também na humilhação em público. Exemplo disso é a postura de reprovação do homem quando a mulher expressa suas ideias durante um encontro entre amigos ou familiares. Ao notar que o outro não gostou, a pessoa se sente intimidada, envergonhada, acaba se calando e ficando apática. Pior: com medo de desagradar, ela insiste em querer justificar a todos o comportamento do outro. 

Para o psiquiatra Adiel Rios, Mestre em Psiquiatria pela UNIFESP, pesquisador no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP); neste relacionamento, crenças relacionadas à insegurança e sentimento de inferioridade podem nutrir uma percepção distorcida da relação, havendo uma excessiva idealização do parceiro, inclusive achando que ele irá mudar. 

Segundo ele, muitas vezes, não é fácil perceber que o relacionamento está se transformando, já que o abusador costuma usar discursos como “faço isso porque me preocupo com você”, ou “estou cuidando do seu bem-estar e da sua segurança”. Todo este comportamento pode ser erroneamente percebido como amor. 

“A pessoa acaba exercendo poder sobre a outra, limitando a sua liberdade, humilhando, denegrindo, impondo sua forma de pensar e ser, de modo que ela acaba perdendo parte de sua identidade e altera a sua existência no mundo. Quando chega a esse ponto de sofrimento psíquico e físico, é hora de rever a relação”, reflete Adiel Rios.

 

Comodismo ou medo?

Além de questões individuais da mulher, como insegurança, sentimento de inferioridade e necessidade de estar com alguém, muitos fatores contribuem para que ela permaneça em um relacionamento abusivo. Algumas tendem a acreditar que não encontrarão outra pessoa. Há também pressões familiares ou sociais, dependência emocional, dependência financeira, medo de se expor e até culpa, pois, muitas vezes, o agressor a responsabiliza pelo comportamento manifestado por ele. 

Quem passa por esses abusos, “finge” já ter se acostumado, e prefere continuar do jeito que está do que enfrentar os desafios que virão pela frente. Essa acomodação pode estar relacionada à própria personalidade da pessoa, alguém que frequentemente se sente frágil e, mesmo sendo abusada, se sente protegida pelo outro. Daí, cria-se uma relação simbiótica, na qual um depende emocionalmente do outro, formalizando um processo de desrespeito e submissão, que é alimentado continuamente. 

Quando chega a extremos de agressão verbal e/ou física, a situação passa a demandar uma mudança comportamental urgente, a começar pela busca de um tratamento psicoterápico, visando a ruptura da relação simbiótica e a busca de equidade e equilíbrio. Para isso, é preciso primeiro reconhecer que é parte de uma relação de abuso. 

“A partir do momento em que a mulher consegue ter consciência da sua realidade e que precisa se libertar da visão que tem sobre amor e respeito, fica mais fácil trabalhar essa distorção em terapia, conseguindo resgatar sua integridade física, moral e psicológica. Uma vez fora da relação abusiva, é importante essa mulher se fortalecer, desenvolver autoconhecimento e saber reconhecer o que define amor”, finaliza a psicóloga Monica Machado.