Unesp: Trajetória de trabalhadores ferroviários no interior de São Paulo

São estudadas as cidades de Rio Claro, São Carlos e Araraquara de 1930 a 1970

23/03/2013 - 04h30

<p style="text-align: justify;">Trabalho estuda trajet&oacute;ria de trabalhadores ferrovi&aacute;rios, negros e brancos, no interior do Estado de S&atilde;o Paulo; especificamente nas cidades de Rio Claro, S&atilde;o Carlos e Araraquara no per&iacute;odo de 1930 a 1970.<br />Pesquisadora associada do Laborat&oacute;rio de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diversidade e ao Centro de Estudos das Culturas e L&iacute;nguas Africanas e da Di&aacute;spora da Unesp, C&acirc;mpus de Araraquara, Lania Stefanoni Ferreira faz uma leitura de como as empresas ferrovi&aacute;rias do in&iacute;cio do s&eacute;culo XX, al&eacute;m de interligar regi&otilde;es e aproximar trabalhadores de diferentes ra&ccedil;as; influenciaram na ascens&atilde;o e mobilidade desta categoria, no campo econ&ocirc;mico, pol&iacute;tico, social e cultural frente &agrave;s outras categorias. Para realizar este trabalho foram entrevistados trabalhadores aposentados da Companhia Paulista nas tr&ecirc;s cidades citadas.<br />Intitulada &ldquo;Entroncamento entre Ra&ccedil;a e Classe: ferrovi&aacute;rios no Centro Oeste Paulista 1930-1970&rdquo;, a pesquisa &eacute; uma tese, apresentada ao Programa de P&oacute;s-Gradua&ccedil;&atilde;o em Ci&ecirc;ncias Sociais do Instituto de Filosofia e Ci&ecirc;ncias Humanas da Unicamp para a obten&ccedil;&atilde;o do T&iacute;tulo de Doutor em Ci&ecirc;ncias Sociais na &aacute;rea de Trabalho, Pol&iacute;tica e Sociedade, sob orienta&ccedil;&atilde;o de M&aacute;rcia de Paula Leite.<br />A autora aponta como a ferrovia criou um novo vocabul&aacute;rio e uma rela&ccedil;&atilde;o in&eacute;dita entre m&aacute;quina e civiliza&ccedil;&atilde;o, transformando percep&ccedil;&otilde;es, sentimentos, h&aacute;bitos e formas de sentir. &rdquo;Al&eacute;m disto, a velocidade dos trilhos fascinou as multid&otilde;es e foi colocando uma nova maneira de ver o mundo, de vivenciar o deslocamento no espa&ccedil;o/tempo, como tamb&eacute;m proporcionou a distin&ccedil;&atilde;o da categoria ferrovi&aacute;ria&rdquo;, diz.<br />Para Lania, o orgulho constru&iacute;do de ser ferrovi&aacute;rio persiste at&eacute; hoje, pois auxiliou na constitui&ccedil;&atilde;o do mundo do trabalho livre na sociedade brasileira. A ferrovia figura nos relatos como o palco do desenrolar da trajet&oacute;ria de cada um dos personagens apresentados.<br />&ldquo;A mem&oacute;ria desses depoentes est&aacute; intimamente ligada ao exerc&iacute;cio da profiss&atilde;o nos trilhos; ela &eacute; o alicerce daquilo que eram. N&atilde;o h&aacute; como se dissociar a vida privada do trabalho de cada um. Para os ferrovi&aacute;rios, os trilhos, os trens e a esta&ccedil;&atilde;o constituem partes de suas trajet&oacute;rias, configuram o imagin&aacute;rio e a mem&oacute;ria de um passado que nunca deixa de se fazer presente na hist&oacute;ria de suas vidas&rdquo;, comenta.<br />A pesquisadora aponta que, em todas as trajet&oacute;rias narradas s&atilde;o encontradas caracter&iacute;sticas fundamentais do &ldquo;ser ferrovi&aacute;rio&rdquo;, sejam aquelas expressas em uma precoce inicia&ccedil;&atilde;o no mundo do trabalho, sejam aquelas que indicam a exist&ecirc;ncia de carreiras funcionais, ou ainda a constitui&ccedil;&atilde;o de uma consci&ecirc;ncia de of&iacute;cio que permeava a vida social e as sociabilidades, possibilidades e oportunidades desta categoria.<br />A identidade ferrovi&aacute;ria, o sentimento de pertencimento a uma fam&iacute;lia s&atilde;o os argumentos recorrentes utilizados pelos funcion&aacute;rios quando necessitavam de aumentos, licen&ccedil;as ou contrata&ccedil;&atilde;o de parentes. Tamb&eacute;m lan&ccedil;avam m&atilde;o deste v&iacute;nculo com a empresa para se distinguir de outros trabalhadores que n&atilde;o compartilhavam da mesma posi&ccedil;&atilde;o, o que funcionava como uma moeda de troca em suas estrat&eacute;gias e no estabelecimento de rela&ccedil;&otilde;es sociais.<br />Lania verifica que a ideia fam&iacute;lia ferrovi&aacute;ria adequa-se ao mito da democracia racial por seu duplo significado: apesar dos conflitos internos que pudessem existir, ela possibilitava a todos seus trabalhadores reconhecerem-se como ferrovi&aacute;rios, no ambiente externo ao trabalho.<br />A ambig&uuml;idade entre cor e classe coexistia na trajet&oacute;ria destes entrevistados como uma rela&ccedil;&atilde;o de implica&ccedil;&atilde;o e n&atilde;o de causalidade, principalmente para os trabalhadores negros. A fam&iacute;lia ferrovi&aacute;ria entendida a partir do crivo de ra&ccedil;a e classe que perpassa pelos sentidos foi um importante fator mediador das rela&ccedil;&otilde;es sociais. &ldquo;A apar&ecirc;ncia do encurtamento das dist&acirc;ncias sociais por meio da informalidade no conv&iacute;vio teve um fundo emotivo que permeou mesmo aquelas rela&ccedil;&otilde;es que seriam mais caracteristicamente impessoais&rdquo;, avalia.<br />Ela ainda argumenta que o fetiche da igualdade entre todos os ferrovi&aacute;rios funcionou como mediador nas rela&ccedil;&otilde;es de classe que em muito contribuiu para que situa&ccedil;&otilde;es conflitivas frequentemente n&atilde;o resultassem em conflitos de fato, mas em concilia&ccedil;&atilde;o no interior da ferrovia.<br />De um lado, a integra&ccedil;&atilde;o da categoria, de outro a separa&ccedil;&atilde;o. Esta diversidade ou pluralidade &eacute; o que caracterizava a fam&iacute;lia ferrovi&aacute;ria tal qual no mito da democracia brasileira, assimilacionista, feito de recortes e n&atilde;o de s&iacute;nteses, de peculiaridades e identidades. &ldquo;Identidades que eram sempre negociadas e renegociadas de acordo com os crit&eacute;rios econ&ocirc;micos, pol&iacute;ticos, culturais e rela&ccedil;&otilde;es de poder em contextos sociais espec&iacute;ficos&rdquo;, comenta.<br />A identidade &eacute; fluida e produzida, para Lania, em momentos particulares, como aconteceu com brancos e negros que trabalharam juntos na Companhia Paulista de Estreada de Ferro; ora a identidade evidenciada era uma identidade &eacute;tnico/racial, como a que fez surgir a necessidade da cria&ccedil;&atilde;o do Clube Flor em S&atilde;o Carlos, um lugar onde os ferrovi&aacute;rios negros tivessem momentos de lazer e divertimento e que com seu desenvolvimento levou a constru&ccedil;&atilde;o de uma identidade negra; ora era uma identidade de uma categoria de trabalhadores lutando por seus direitos em greves e paralisa&ccedil;&otilde;es. &ldquo;Assim, &eacute; imposs&iacute;vel entender esta categoria separada da no&ccedil;&atilde;o de luta de classe hist&oacute;rica dos ferrovi&aacute;rios, porque foi no processo desta luta que ela se definiu e se concretizou&rdquo;, declara.<br />Os depoimentos, para a pesquisadora, tamb&eacute;m descrevem a hierarquia entre os integrantes da comunidade ferrovi&aacute;ria e, igualmente, os privil&eacute;gios dos quais apenas alguns desfrutavam. Os sacrif&iacute;cios, as agruras de algumas fun&ccedil;&otilde;es s&atilde;o igualmente destacados, bem como epis&oacute;dios de benevol&ecirc;ncia, e at&eacute; mesmo complac&ecirc;ncia, no tratamento preconceituoso entre colegas.<br />Nas situa&ccedil;&otilde;es de conviv&ecirc;ncia dentro do ambiente de trabalho, segundo a pesquisa, era preciso que os negros n&atilde;o ultrapassassem as barreiras do socialmente permitido e desej&aacute;vel em rela&ccedil;&atilde;o aos brancos, para que fosse assegurada a continuidade das estruturas sociais existentes. Eles poderiam at&eacute; viver juntos aos brancos desde que conhecessem seu lugar, conforme muitas das narrativas transcritas demonstraram. Logo, a inclus&atilde;o social do negro trazia no ambiente de trabalho ferrovi&aacute;rio uma exclus&atilde;o social n&atilde;o demarcada, indefinida, amb&iacute;gua, repleta de diverg&ecirc;ncias e converg&ecirc;ncias.<br />As entrevistas com os ferrovi&aacute;rios evidenciaram que, quando s&atilde;o analisadas as intera&ccedil;&otilde;es face a face entre estes dois grupos, &eacute; poss&iacute;vel perceber a presen&ccedil;a do preconceito e da discrimina&ccedil;&atilde;o.<br />Este preconceito nos ambiente de trabalho estaria presente, por exemplo, nas brincadeiras citadas pelo senhor Pedro (branco), ou na fala do senhor Gustavo (negro), quando menciona o fato de o senhor Rafael (negro), n&atilde;o ser indicado a melhores cargos, pelos chefes, por ser negro. A discrimina&ccedil;&atilde;o por sua vez, pode ser evidenciada no fato de que, ambos entrevistados tinham a percep&ccedil;&atilde;o de que quem conseguia ascender de cargo na Companhia Paulista eram os brancos.<br />&ldquo;Apesar de esta pesquisa fundamentar-se em m&eacute;todos qualitativos, n&atilde;o trabalhando com amostras estatisticamente representativas, as entrevistas nos induzem a concluir que o preconceito informal acabava por influenciar os chefes quando iam escolher quem deveria ser promovido, conforme foi assinalado por muitos depoentes, ainda que os poucos negros que fizeram Escola SENAI Ferrovi&aacute;ria, (seis negros de um total de trinta e tr&ecirc;s entrevistados), tenham ascendido a cargos de mando&rdquo;, acredita Lania.<br />Os entrevistados tamb&eacute;m afirmaram que os negros n&atilde;o subiam de cargo porque n&atilde;o tinham estudo e assim, conseq&uuml;entemente n&atilde;o passavam nos exames. No entanto, os exames eram pr&aacute;ticos, exigindo muito mais experi&ecirc;ncia do que escolaridade, o que sugere que a alega&ccedil;&atilde;o da falta de estudo n&atilde;o se sustenta, al&eacute;m de que a diferen&ccedil;a de escolaridade entre os brancos e negros n&atilde;o era muito significativa quando consideramos o total de entrevistados conforme pode ser verificado nos anexos relativos ao grau de escolaridade dos entrevistados segundo a cor.<br />&ldquo;Nos anos 1940, quem se referia ao trem ou transporte ferrovi&aacute;rio remetia a um imenso e rico complexo s&oacute;cio-cultural. Portanto, a ferrovia tamb&eacute;m representou para seus trabalhadores, fossem eles brancos ou negros, probabilidades e ensejos que qualquer outra categoria da &eacute;poca dificilmente possu&iacute;a&rdquo;, declara a pesquisadora.<br />De acordo com M&aacute;rcia, a no&ccedil;&atilde;o de fam&iacute;lia ferrovi&aacute;ria igualmente ao mito da democracia racial com suas id&eacute;ias de aus&ecirc;ncia de preconceito e discrimina&ccedil;&atilde;o pode ser encarada como ideologia de uma representa&ccedil;&atilde;o mais ampla sobre o car&aacute;ter nacional brasileiro, que inclui no&ccedil;&otilde;es como do &ldquo;homem cordial&rdquo;, &ldquo;povo pac&iacute;fico&rdquo; e a tend&ecirc;ncia &agrave; concilia&ccedil;&atilde;o e ao compromisso.<br />A imagem harm&ocirc;nica &eacute;tnico/racial como parte de uma concep&ccedil;&atilde;o ideol&oacute;gica mais geral da natureza humana do &ldquo;brasileiro&rdquo;, de acordo com a pesquisa, associa-se a um mecanismo de legitima&ccedil;&atilde;o destinado a absorver tens&otilde;es, bem como antecipar e controlar &aacute;reas de conflito social. &ldquo;E onde as dist&acirc;ncias sociais s&atilde;o mais pronunciadas, quase gritantes, &agrave;s vezes, &eacute; onde vamos encontrar mais presente esse fetiche da igualdade, com as exce&ccedil;&otilde;es necess&aacute;rias para confirmar a regra&rdquo;, afirma Lania.<br />&ldquo;A qualidade e tipo de rela&ccedil;&otilde;es que se conformaram entre os ferrovi&aacute;rios brancos e negros foram fortemente marcadas ora por rela&ccedil;&otilde;es horizontais de sociabilidade inter-racial, ora por rela&ccedil;&otilde;es verticais entre diferentes classes sociais, que envolvem rela&ccedil;&otilde;es de poder s&oacute;cio-econ&ocirc;mico, mobilidade social e neste caso tamb&eacute;m, a no&ccedil;&atilde;o de fam&iacute;lia ferrovi&aacute;ria?&rdquo;, conclui Lania. Portanto, as pr&aacute;ticas de inclus&atilde;o e exclus&atilde;o observadas nas intera&ccedil;&otilde;es entre os pr&oacute;prios ferrovi&aacute;rios e entre esses e o meio que os cercavam, confirmam que &eacute; somente a partir da uni&atilde;o das perspectivas de mistura e segrega&ccedil;&atilde;o, caracter&iacute;stica da sociedade brasileira, que podemos entender a complexidade do nosso sistema racial.</p>