<p style="text-align: justify;">Trabalho estuda trajetória de trabalhadores ferroviários, negros e brancos, no interior do Estado de São Paulo; especificamente nas cidades de Rio Claro, São Carlos e Araraquara no período de 1930 a 1970.<br />Pesquisadora associada do Laboratório de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diversidade e ao Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora da Unesp, Câmpus de Araraquara, Lania Stefanoni Ferreira faz uma leitura de como as empresas ferroviárias do início do século XX, além de interligar regiões e aproximar trabalhadores de diferentes raças; influenciaram na ascensão e mobilidade desta categoria, no campo econômico, político, social e cultural frente às outras categorias. Para realizar este trabalho foram entrevistados trabalhadores aposentados da Companhia Paulista nas três cidades citadas.<br />Intitulada “Entroncamento entre Raça e Classe: ferroviários no Centro Oeste Paulista 1930-1970”, a pesquisa é uma tese, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp para a obtenção do Título de Doutor em Ciências Sociais na área de Trabalho, Política e Sociedade, sob orientação de Márcia de Paula Leite.<br />A autora aponta como a ferrovia criou um novo vocabulário e uma relação inédita entre máquina e civilização, transformando percepções, sentimentos, hábitos e formas de sentir. ”Além disto, a velocidade dos trilhos fascinou as multidões e foi colocando uma nova maneira de ver o mundo, de vivenciar o deslocamento no espaço/tempo, como também proporcionou a distinção da categoria ferroviária”, diz.<br />Para Lania, o orgulho construído de ser ferroviário persiste até hoje, pois auxiliou na constituição do mundo do trabalho livre na sociedade brasileira. A ferrovia figura nos relatos como o palco do desenrolar da trajetória de cada um dos personagens apresentados.<br />“A memória desses depoentes está intimamente ligada ao exercício da profissão nos trilhos; ela é o alicerce daquilo que eram. Não há como se dissociar a vida privada do trabalho de cada um. Para os ferroviários, os trilhos, os trens e a estação constituem partes de suas trajetórias, configuram o imaginário e a memória de um passado que nunca deixa de se fazer presente na história de suas vidas”, comenta.<br />A pesquisadora aponta que, em todas as trajetórias narradas são encontradas características fundamentais do “ser ferroviário”, sejam aquelas expressas em uma precoce iniciação no mundo do trabalho, sejam aquelas que indicam a existência de carreiras funcionais, ou ainda a constituição de uma consciência de ofício que permeava a vida social e as sociabilidades, possibilidades e oportunidades desta categoria.<br />A identidade ferroviária, o sentimento de pertencimento a uma família são os argumentos recorrentes utilizados pelos funcionários quando necessitavam de aumentos, licenças ou contratação de parentes. Também lançavam mão deste vínculo com a empresa para se distinguir de outros trabalhadores que não compartilhavam da mesma posição, o que funcionava como uma moeda de troca em suas estratégias e no estabelecimento de relações sociais.<br />Lania verifica que a ideia família ferroviária adequa-se ao mito da democracia racial por seu duplo significado: apesar dos conflitos internos que pudessem existir, ela possibilitava a todos seus trabalhadores reconhecerem-se como ferroviários, no ambiente externo ao trabalho.<br />A ambigüidade entre cor e classe coexistia na trajetória destes entrevistados como uma relação de implicação e não de causalidade, principalmente para os trabalhadores negros. A família ferroviária entendida a partir do crivo de raça e classe que perpassa pelos sentidos foi um importante fator mediador das relações sociais. “A aparência do encurtamento das distâncias sociais por meio da informalidade no convívio teve um fundo emotivo que permeou mesmo aquelas relações que seriam mais caracteristicamente impessoais”, avalia.<br />Ela ainda argumenta que o fetiche da igualdade entre todos os ferroviários funcionou como mediador nas relações de classe que em muito contribuiu para que situações conflitivas frequentemente não resultassem em conflitos de fato, mas em conciliação no interior da ferrovia.<br />De um lado, a integração da categoria, de outro a separação. Esta diversidade ou pluralidade é o que caracterizava a família ferroviária tal qual no mito da democracia brasileira, assimilacionista, feito de recortes e não de sínteses, de peculiaridades e identidades. “Identidades que eram sempre negociadas e renegociadas de acordo com os critérios econômicos, políticos, culturais e relações de poder em contextos sociais específicos”, comenta.<br />A identidade é fluida e produzida, para Lania, em momentos particulares, como aconteceu com brancos e negros que trabalharam juntos na Companhia Paulista de Estreada de Ferro; ora a identidade evidenciada era uma identidade étnico/racial, como a que fez surgir a necessidade da criação do Clube Flor em São Carlos, um lugar onde os ferroviários negros tivessem momentos de lazer e divertimento e que com seu desenvolvimento levou a construção de uma identidade negra; ora era uma identidade de uma categoria de trabalhadores lutando por seus direitos em greves e paralisações. “Assim, é impossível entender esta categoria separada da noção de luta de classe histórica dos ferroviários, porque foi no processo desta luta que ela se definiu e se concretizou”, declara.<br />Os depoimentos, para a pesquisadora, também descrevem a hierarquia entre os integrantes da comunidade ferroviária e, igualmente, os privilégios dos quais apenas alguns desfrutavam. Os sacrifícios, as agruras de algumas funções são igualmente destacados, bem como episódios de benevolência, e até mesmo complacência, no tratamento preconceituoso entre colegas.<br />Nas situações de convivência dentro do ambiente de trabalho, segundo a pesquisa, era preciso que os negros não ultrapassassem as barreiras do socialmente permitido e desejável em relação aos brancos, para que fosse assegurada a continuidade das estruturas sociais existentes. Eles poderiam até viver juntos aos brancos desde que conhecessem seu lugar, conforme muitas das narrativas transcritas demonstraram. Logo, a inclusão social do negro trazia no ambiente de trabalho ferroviário uma exclusão social não demarcada, indefinida, ambígua, repleta de divergências e convergências.<br />As entrevistas com os ferroviários evidenciaram que, quando são analisadas as interações face a face entre estes dois grupos, é possível perceber a presença do preconceito e da discriminação.<br />Este preconceito nos ambiente de trabalho estaria presente, por exemplo, nas brincadeiras citadas pelo senhor Pedro (branco), ou na fala do senhor Gustavo (negro), quando menciona o fato de o senhor Rafael (negro), não ser indicado a melhores cargos, pelos chefes, por ser negro. A discriminação por sua vez, pode ser evidenciada no fato de que, ambos entrevistados tinham a percepção de que quem conseguia ascender de cargo na Companhia Paulista eram os brancos.<br />“Apesar de esta pesquisa fundamentar-se em métodos qualitativos, não trabalhando com amostras estatisticamente representativas, as entrevistas nos induzem a concluir que o preconceito informal acabava por influenciar os chefes quando iam escolher quem deveria ser promovido, conforme foi assinalado por muitos depoentes, ainda que os poucos negros que fizeram Escola SENAI Ferroviária, (seis negros de um total de trinta e três entrevistados), tenham ascendido a cargos de mando”, acredita Lania.<br />Os entrevistados também afirmaram que os negros não subiam de cargo porque não tinham estudo e assim, conseqüentemente não passavam nos exames. No entanto, os exames eram práticos, exigindo muito mais experiência do que escolaridade, o que sugere que a alegação da falta de estudo não se sustenta, além de que a diferença de escolaridade entre os brancos e negros não era muito significativa quando consideramos o total de entrevistados conforme pode ser verificado nos anexos relativos ao grau de escolaridade dos entrevistados segundo a cor.<br />“Nos anos 1940, quem se referia ao trem ou transporte ferroviário remetia a um imenso e rico complexo sócio-cultural. Portanto, a ferrovia também representou para seus trabalhadores, fossem eles brancos ou negros, probabilidades e ensejos que qualquer outra categoria da época dificilmente possuía”, declara a pesquisadora.<br />De acordo com Márcia, a noção de família ferroviária igualmente ao mito da democracia racial com suas idéias de ausência de preconceito e discriminação pode ser encarada como ideologia de uma representação mais ampla sobre o caráter nacional brasileiro, que inclui noções como do “homem cordial”, “povo pacífico” e a tendência à conciliação e ao compromisso.<br />A imagem harmônica étnico/racial como parte de uma concepção ideológica mais geral da natureza humana do “brasileiro”, de acordo com a pesquisa, associa-se a um mecanismo de legitimação destinado a absorver tensões, bem como antecipar e controlar áreas de conflito social. “E onde as distâncias sociais são mais pronunciadas, quase gritantes, às vezes, é onde vamos encontrar mais presente esse fetiche da igualdade, com as exceções necessárias para confirmar a regra”, afirma Lania.<br />“A qualidade e tipo de relações que se conformaram entre os ferroviários brancos e negros foram fortemente marcadas ora por relações horizontais de sociabilidade inter-racial, ora por relações verticais entre diferentes classes sociais, que envolvem relações de poder sócio-econômico, mobilidade social e neste caso também, a noção de família ferroviária?”, conclui Lania. Portanto, as práticas de inclusão e exclusão observadas nas interações entre os próprios ferroviários e entre esses e o meio que os cercavam, confirmam que é somente a partir da união das perspectivas de mistura e segregação, característica da sociedade brasileira, que podemos entender a complexidade do nosso sistema racial.</p>